Por que continuamos a engolir tantas tontices sobre a nossa bebida preferida?
Há quem diga que sem café não arranca. A mítica bebida preta que faz parte do ritual matinal de milhões de portugueses continua, no entanto, a ser vítima de uma propaganda mais persistente que uma nódoa de café numa camisa branca. Se já ouviste dizer que o café faz mal ao coração ou que te torna mais sóbrio depois de uma noite bem regada, é hora de limpares o filtro das ideias feitas.
Prepara-te, porque vamos desconstruir as maiores aldrabices sobre o café.
1. O café atrofia o crescimento
O que dizem: “Não bebas café, pá! Queres ficar baixinho para sempre?”
A realidade: Este mito tem tanto fundamento científico como dizer que se engolires pastilha elástica, essa fica sete anos no estômago. Não há uma única evidência científica que relacione o consumo de café com problemas de crescimento. Esta ideia surgiu porque os pais precisavam de uma desculpa para não dar bebidas excitantes às crianças. A ciência agradece a intenção, mas o argumento não tem pernas para andar.
Segundo um estudo publicado na revista Nutrition Research, não existe correlação entre o consumo moderado de cafeína e alterações na densidade óssea ou crescimento em adolescentes.
[Fonte: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4548252/]
2. Café escuro tem mais Cafeína
O que dizem: “Queres um café forte? Tem de ser o mais escuro, pá!”
A realidade: Engano. O processo de torra tem mais influência no sabor do que na quantidade de cafeína. Na verdade, quanto mais tempo os grãos são torrados, mais massa perdem, e com ela, parte da cafeína! Os grãos mais claros podem até ter um bocadinho mais de cafeína do que os escuros.
É como aquele amigo que parece durão por fora mas chora com filmes da Disney – as aparências iludem, amigos. A intensidade do sabor não tem relação direta com a quantidade de cafeína.
Um estudo da Universidade de Newcastle demonstrou que a torra mais prolongada pode reduzir o teor de cafeína em até 10-15%.
[Fonte: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0308814617317508]
3. O café desidrata
O que dizem: “Bebe água depois do café ou ficas seco como um bacalhau!”
A realidade: Embora o café tenha um ligeiro efeito diurético, não é o deserto do Saara em formato líquido. O corpo ainda retém grande parte dos líquidos da bebida. Estudos mostram que o consumo moderado de café (até 4 chávenas por dia) não causa desidratação significativa.
Aliás, se o café desidratasse tanto como dizem, metade da população portuguesa andaria por aí a parecer passas de uva ambulantes, especialmente depois daquele cafezinho a seguir ao almoço.
Investigações da Universidade de Birmingham revelaram que o consumo moderado de café tem efeitos hidratantes comparáveis à água.
[Fonte: https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0084154]
4. O café expresso tem sempre mais cafeína
O que dizem: “O expresso é uma bomba de cafeína!”
A realidade: Dose por dose, sim – o expresso tem mais cafeína por mililitro. Mas a menos que bebas expresso como se fosse água, uma chávena normal de café de filtro entrega-te mais cafeína total simplesmente porque bebes mais quantidade.
Um expresso típico tem cerca de 30-50mg de cafeína, enquanto uma chávena de café de filtro pode conter 95-200mg. Faz as contas antes de culpares o expresso por estares mais acordado que um guarda noturno.
De acordo com a Associação Europeia de Cafés Especiais, um expresso padrão (30ml) contém em média 63mg de cafeína, enquanto uma chávena de café de filtro (240ml) contém cerca de 95mg.
[Fonte: https://sca.coffee/research/coffee-standards]
5. O café ajuda a ficar sóbrio
O que dizem: “Manel, toma lá um café forte para te passar a bebedeira!”
A realidade: O café pode dar-te a ilusão de estar mais alerta, mas não acelera o processamento do álcool pelo fígado nem por um segundo. Estás apenas a criar um bêbado mais desperto – o que, convenhamos, nem sempre é uma melhoria.
O único remédio para a alcoolemia é o tempo. Nem cafés, nem banhos frios, nem voltas à praceta vão fazer o álcool desaparecer mais depressa do sangue.
A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária confirma que apenas o tempo pode diminuir os níveis de álcool no sangue, a uma taxa aproximada de 0,10g/l por hora.
[Fonte: http://www.ansr.pt/SegurancaRodoviaria/AlcoolEDrogas]
6. O café faz mal ao coração
O que dizem: “Cuidado com o café, que isso dispara o coração!”
A realidade: Para a maioria dos adultos saudáveis, o consumo moderado (3-4 chávenas por dia) não só é seguro como pode até proteger contra certas doenças cardíacas. Um estudo da Universidade de Harvard acompanhou mais de 200 mil pessoas e concluiu que o café não aumenta o risco de problemas cardiovasculares.
Claro que se bebes café como se não houvesse amanhã, talvez o amanhã decida mesmo não aparecer – a moderação é sempre a chave.
A Sociedade Europeia de Cardiologia publicou uma meta-análise indicando que o consumo moderado de café está associado a um risco 15% menor de doenças cardiovasculares.
[Fonte: https://academic.oup.com/eurjpc/article/28/15/1691/6276671]
7. O café causa insónia a toda a gente
O que dizem: “Bebeste café às 23h? Não vais dormir a noite toda!”
A realidade: A cafeína pode afetar o sono, mas a sensibilidade varia tremendamente de pessoa para pessoa. Há quem durma como um bebé depois de um café a seguir ao jantar, e há quem fique a contar ovelhas só de sentir o cheiro.
O café consumido de manhã ou ao almoço raramente causa problemas de sono, a menos que sejas mais sensível à cafeína que um gato assustado. O truque está em conhecer o teu próprio corpo.
Um estudo do Centro de Cronobiologia da Universidade de Basileia demonstrou que a cafeína consumida até 6 horas antes de dormir pode reduzir o tempo total de sono em apenas 1 hora, sendo que os efeitos são altamente individualizados.
[Fonte: https://jcsm.aasm.org/doi/10.5664/jcsm.3170]
8. Grávidas devem evitar café completamente
O que dizem: “Se estás grávida, nem cheirar café podes!”
A realidade: Os especialistas em obstetrícia não proíbem completamente o café, apenas recomendam a moderação. O limite seguro é de cerca de 200mg de cafeína por dia (o equivalente a uma chávena grande de café).
É claro que cada gravidez é única e a palavra final é sempre do médico. Mas a ideia de que uma grávida que toca numa chávena de café está a cometer um crime contra a humanidade é tão exagerada como dizer que comer um pastel de nata vai transformá-lo num mini-pasteleiro de Belém.
A Organização Mundial de Saúde recomenda que mulheres grávidas limitem o consumo de cafeína a 200-300mg diários.
[Fonte: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/healthy-diet]
9. O café é demasiado ácido e massacra o estômago
O que dizem: “Se o café fosse mais ácido, furava o estômago!”
A realidade: Algumas pessoas realmente sentem desconforto gástrico com café, mas isso está longe de ser uma regra universal. A acidez do café varia imenso dependendo do grão, da torra e do método de preparação.
Existem inclusive cafés de baixa acidez para estômagos mais sensíveis. O café não é mais ácido que muitos sumos de fruta que consumimos sem drama. Se tens problemas gástricos, o café pode não ser teu amigo, mas não é preciso demonizar a bebida.
Investigações da Universidade do Porto demonstraram que diferentes métodos de extração resultam em níveis de acidez variáveis, com os cafés de filtro tipicamente apresentando menor acidez que os expressos.
[Fonte: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0308814612018213]
10. A Cafeína Só Faz Mal
O que dizem: “A cafeína é quase um veneno!”
A realidade: A cafeína, quando consumida com sensatez, pode trazer vários benefícios: melhora a concentração, o desempenho físico e tem efeitos potencialmente protetores contra doenças como Parkinson e diabetes tipo 2.
O problema surge com o consumo excessivo ou em pessoas hipersensíveis. Como quase tudo na vida, é uma questão de dose. Uma chávena não te fará super-humano, nem te destruirá – a moderação é sempre rainha.
Um extenso estudo publicado no British Medical Journal analisou mais de 200 meta-análises e concluiu que o consumo moderado de café está associado a um risco reduzido de várias doenças crónicas, incluindo certos tipos de cancro, doenças cardiovasculares e neurológicas.
[Fonte: https://www.bmj.com/content/359/bmj.j5024]
A Verdade Pura… Como Um Bom Café!
Enquanto metade dos mitos sobre o café permanece mais rija que um galão esquecido numa secretária, a ciência continua a demonstrar que o consumo moderado não só é seguro para a maioria das pessoas como pode até ser benéfico.
Cada organismo reage de forma diferente, é certo. Mas entre o pânico infundado e a adoração cega, há uma chávena de bom senso à espera de ser servida.
Da próxima vez que alguém te vier com uma dessas lérias sobre os “perigos mortais” do café, serve-lhe este artigo juntamente com um expresso bem tirado. Afinal, nada como desmontar mitos com um bom café na mão!
Fontes Adicionais para Consulta:
- Organização Internacional do Café – https://www.ico.org/health.asp
- Associação Industrial e Comercial do Café (AICC) – https://www.aicc.pt/
- Harvard T.H. Chan School of Public Health – https://www.hsph.harvard.edu/nutritionsource/food-features/coffee/
- European Food Safety Authority (EFSA) – https://www.efsa.europa.eu/en/topics/topic/caffeine
- Revista Médica Portuguesa – https://www.actamedicaportuguesa.com/